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Memória, imagem e presença LGBTQIAPN+ na arte contemporânea brasileira

Por Diogo Barros*

 

No campo prolífico da arte contemporânea, as histórias que não foram contadas - ou antes elaboradas pelos olhos dominantes - vêm ganhando espaço e protagonizando debates, em especial no âmbito institucional. Grupos socialmente marginalizados, como a comunidade LGBTQIAPN+, negra e indígena, vivem uma retomada de suas narrativas, reivindicando uma autonomia nos espaços de poder e legitimação, como os museus e galerias. Esse movimento se articula com transformações sociais fruto de lutas coletivas, pelas quais o acesso a espaços de formação e difusão de produções artísticas tornou-se mais viável, principalmente através de políticas públicas.

 

Encontro entre Davi e Golias segundo GH, 2020.
Masina Pinheiro e Gal Cipreste | Cortesia das artistas

 

Nesse momento de efervescência, não é possível - e nem interessante - definir e agrupar artistas e suas poéticas em movimentos específicos na busca de sintetizar sua presença no cenário artístico. Por outro lado, pode-se constatar a pluralidade de formas de materialização em que artistas dissidentes manifestam suas pesquisas e anseios.

Corporificar vidas desviantes da norma e inseri-las na história da arte é, por si só, um ato de dimensões imensuráveis, considerando um histórico de hegemonia que o próprio sistema da arte construiu. O amor e a luta, o desejo e a vida manifestados em produções artísticas na contramão da censura e do moralismo, e reconfiguram o imaginário compartilhado na arte contemporânea.

 

Réquiem para um nome, 2024.
Thix. | Cortesia da artista.

 

Nesse sentido, poéticas como da artista Thix, que produz retratos de pessoas queer utilizando técnicas canônicas da pintura clássica, indicam um caminho de revisões históricas. Criando um vasto acervo de pinturas profundamente detalhadas, Thix insere corpos desobedientes na tradição da pintura, promovendo um acerto de contas ao promover dignidade na representação de cada pessoa retratada. No projeto “Retificação”, atualmente em cartaz na Temporada de Projetos do Paço das Artes, a artista expõe 34 retratos de pessoas trans/não-binárias em um grande paredão - todos produzidos em um enquadramento que remete às fotos 3X4, utilizadas em documentos como o RG. O título da exposição revela uma retificação promovida pela artista no campo da pintura, mas também diz sobre o processo de atualização dos nomes no processo burocrático das documentações pessoais - processos distintos, mas que se encontram em uma nova era.

Já o artista Fefa Lins constrói um universo pictórico que navega entre a figuração e a fabulação, que partem diretamente da sua experiência enquanto pessoa transmaculina. A obra de Lins versa sobre a propriedade e liberdade sobre seu corpo, revelando suas cicatrizes e processos de reconhecimento, mas também lança luz sobre a aliança desviante da norma, retratando momentos de confidência, confraternização e lazer.

 

CUIDADO COMIGO, 2024.
Fefa Lins. | Cortesia do artista.

 

Nas lacunas da história, Mayara Ferrão investiga o amor entre mulheres negras que não foi registrado em imagens. Utilizando ferramentas de Inteligência Artificial, entre outras linguagens como a fotografia e a pintura, a artista desenvolve um campo visual dos afetos e uma restituição ancestral. Sua série mais conhecida é “Álbum dos Desesquecimentos”, de 2024, e já foi exposta tanto em exposições mais focadas em temáticas da ancestralidade afro-brasileira, como em curadorias que reuniram produções de artistas LGBTQIAPN+. 

 

GH, 2020.
Masina Pinheiro e Gal Cipreste. | Cortesia das artistas.

 

Ainda no universo das imagens, percebe-se a relevância da fotografia enquanto espaço de experimentação e criação de outros repertórios visuais. Para Masinha Pinheiro e Gal Cipestre, duo de artistas não-bináries do Rio de Janeiro, a fotografia e o vídeo são linguagens utilizadas para refletir processos pessoais de identificação. Construindo uma narrativa fragmentada e permeada de símbolos - em constante desenvolvimento -, o duo entrelaça suas trajetórias através de uma reformulação de eventos e elementos que as marcaram desde a infância - ou, ainda mais, em um encontro com uma história que as antecede, mas nela estão implicadas. Seja através do autorretrato, ou em composições com objetos variados e familiares, esse acervo imagético, sonoro e objetual reestrutura as experiências de corpos que rejeitam as polaridades dos gêneros binários, para localizar novas possibilidades de vivência.

O histórico de resistência a opressões sistêmicas também orienta pesquisas desenvolvidas na arte contemporânea. Tendo a luta e estratégias de sobrevivência como referência, artistas resgatam histórias de pessoas e grupos que pavimentaram o caminho para sua existência, bem como projetando caminhos coletivos. “Tarântula Transita”, por exemplo, é um espetáculo da artista e poeta Vulcanica Pokaropa, e baseia-se no histórico de mulheres trans e travestis durante a perseguição policial sofrida na Operação Tarântula no final da ditadura militar. Evocando a dor e o riso, a artista estrutura o espetáculo em dinâmicas circenses com fantoches e cenário estruturado, aproximando públicos de todas as faixas etárias de um assunto tão caro à memória coletiva.

 

Espetáculo Tarântula Transita, no Paço das Artes em 2024.
Vulcanica Pokaropa | Cortesia da artista. | Foto: Lucas Mello.

 

Repensar uma sociedade mais justa e harmônica através de olhares dissidentes também implica a reavaliação da relação entre a humanidade e a terra. UÝRA, artista, bióloga e educadora indígena, utiliza sua obra para pensar uma natureza em deslocamento, corporificada. Tendo o próprio corpo como elemento central em suas ações, a artista mobiliza outras concepções de harmonia entre os seres vivos, resgatando saberes e estéticas ancestrais em contextos urbanos. Já nas fotografias de Rafael Medina, apresentadas na exposição “O mais profundo é a pele: envelhecer LGBT+” em cartaz no Museu da Diversidade Sexual em São Paulo, encontra-se uma constelação de histórias contadas pelo testemunho do corpo através do tempo. Direcionando o olhar para corpos dissidentes que alcançaram a longevidade, o fotógrafo presta homenagem a gerações que superaram adversidades e demonstram hoje outras possibilidades na construção de territórios subjetivos e afetivos.

 

Sem título (modelo: Jorge Madruga), 2025.
Rafael Medina. | Cortesia do artista.

 

Para além dessa exposição, o Museu da Diversidade de São Paulo é um importante centro de memória da comunidade e um espaço de aprofundamento e atualização sobre os debates relacionados à vida e memória LGBTQIAPN+. Seu programa de exposições e ações culturais lançam luz sobre documentos históricos e obras de arte para aproximar o público dessas vivências.

Reascender memórias adormecidas, criar imagens com as quais queremos sonhar, e alimentar acervos com novas narrativas são movimentos que conectam essas produções, tão distintas, mas ligadas por uma constelação. Reverenciar as que abriram o caminho é a chave para compreender possibilidades de uma comunidade que se amplia em movimento contínuo, que sempre contará com pesquisas no campo da arte para materializar novos mundos.

 

 

Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.

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